segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Acordar no deserto.


O chão fedia, o ar fedia, tudo estava extraordinariamente perto do insuportável. Até o Sol parecia estar tão perto que quase me chamuscava as pestanas dos olhos que começava a abrir. Ouvia-os ao longe, sabia que estavam uns metros à frente, mas não os via. O calor fazia a paisagem tremer, distorcendo dois vultos misturados com os animais que impregnavam o ar quente.

O primeiro sinal de que eram mesmo eles foi a voz de Maria. Ouvi aquela rouquidão suave de radialista muito ao de leve, secundada por um cuspir de palavras de José. Nenhuma semelhança se podia encontrar entre o cuidado de dicção de Maria, expressa na sua voz granulada do pó de todos os dias, e o grunhir do marido. Ele não falava, certamente, melhor do que muitos dos seus animais, tendo apenas a sorte de se exprimir – e mal – numa língua perceptível aos humanos, mas ela parecia entendê-lo sem problemas.

Era capaz de jurar que a via ali, com um vestido tão leve como o do seu casamento, provavelmente bege. Lembrava-se como se tivesse sido no dia anterior. Talvez fosse até momentaneamente branco, mas o pó tratar-se-ia de o enfeitar mais ao jeito do deserto. Não tinha mangas, nunca tinha mangas. Os seus airosos braços estariam bem mais à mostra do que as suas ainda mais airosas pernas. Cheirava a uma flor qualquer que não sabia identificar, mas que pouco mascarava o cheiro descarado do suor dele, que lhe ensopava a camisa velha aos quadrados. José seria certamente alérgico a qualquer outro tipo de camisas e padrões, visto não haver memória dele a usar algo de muito diferente.

O pó assentou um pouco e quase que lhe vi o batom, vermelho, que sempre pensei que ela usava. No casamento estava igual, naturalmente. Talvez a cor fosse natural, mas nunca a olhei dessa maneira. O batom era essencial em todas as minhas fantasias, todas elas terminavam com um dos cantos dos meus lábios pintados de vermelho. Não sonhava muito alto, bastava um beijo de raspão, um cumprimentar de esguelha. Nem queria grandes momentos de amor, só este pequeno toque. Mas nem isso tinha. Era mais provável esse contorno de lábios estar desenhado algures no bigode de José, pintando-lhe os restos da sandes de queijo e pó que come religiosamente ao almoço e o palito que sempre mastiga à sobremesa.

Foi no casamento deles que me apaixonei por ela, foi no casamento deles que fantasiei com ela, entre brindes de tequila e vivas aos noivos. À medida que eles me subiam à cabeça, traziam a raiva escondida e afogada bem no fundo de algum órgão. Olhava-lhe o fato barato e ria-me sozinho. Via-lhe as botas, tão impróprias ali como gelados no Alasca, e ria-me mais alto e mais sozinho. Cheirava-lhe o fedor que emanava a cada passagem do número de dança que tão pouco entusiasmado fazia e ria-me ainda mais, depois de um primeiro momento em que fazia por revelar algo como uma expressão de nojo puro. E a tequila ia desaparecendo dos meus copos ao mesmo ritmo a que as pessoas iam fugindo da minha mesa. Reparava-lhe por fim na mulher, e chorava. Não chorei muito, antes de adormecer com toda a gente a olhar-me de cada vez mais longe.

Sentia-me agora perdido e a desfalecer. Queria água, queria que tapassem o Sol com uma pala gigante, só por uns minutos, até me recompor. Tinha os sapatos quase brancos. Cuspi-lhes as últimas pingas de saliva e esfreguei-os nas pernas opostas. Pintei-os de preto. Também sentia o pescoço apertado, pela gravata que reparava estar a usar. E foi no dia a seguir ao casamento que me desapaixonei por ela, entre vómitos secos e promessas de sobriedade eterna.


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