sábado, 25 de agosto de 2012

Coisas que até fazem sentido mas que eu nunca tinha percebido até agora, e que percebi hoje enquanto ia comprar bifes de frango ao talho

Olá,

desde mais, um teaser de frases giras que podem ser lidas neste post:
[E]u compreendo que existindo tal desejo, seja natural matar. (…) Dos ovos à matança generalizada é um passo. (…) A minha análise tem contornos pensamento económico. (…) Achava que 'saladas de fruta' era um um legume.
Há muitas conversas que eu tenho para mim e que são ready-mades. De tempos a tempos, se apropriado, lá tenho o meu dois minutos de conversa planeado, ensaiada quase, de tantas vezes repetidas. Um desses trechos de conversação refere-se aos ditos 'povos perversos.' Eu finjo ter a opinião que 'existem dois povos perversos no mundo, pata ti pa tatá'.

Não interessa. Interessam sim os exemplos que eu dou, a saber, dois filmes. Um deles (o que iliustra o primeiro povo, perverso) chama-se Funny Games e têm duas versões (1997 e 2007). Deixo aqui abaixo os trailers de uma e outra versão.


A estória do filme é simples. Uma família (casal e filho) está de férias na sua magnífica casa de campo. Chegam dois jovens que lhes pedem ovos. São bem educados e estão bem vestidos (todos de branco, mas com luvas, brancas também — pormenor estranho).

Dos ovos à matança generalizada é um passo. Nunca me aconteceu tal coisa enquanto fazia omeletes, mas a verdade é que não sou chef, se calhar uso os ingredientes errados.

Os dois rapazes fazem uma aposta com a família: eles apostam que a família estará morta dentro de 24h e a família aposta que não estará morta. Não vos digo quem ganha.

E assim se passa o filme. Agora, qual é a motivação daqueles rapazes? A dada altura a Naomi Watts pergunta a um dos jovens qualquer coisa como, 'mas porque é que não nos mata, simplesmente?' O rapaz responde-lhe, 'Não se pode esquecer a importância do entretenimento…' (Esta observação serve não apenas ao uso da violência como diversão — eles quererm divertir-se — como ao uso da violência por parte do cinema, para entreter quem vê.)

Pronto, eles querem divertir-se. Pena é que gente tenha de morrer. Ao que parece, algo de semelhante acontece quando uma pessoa compra coisas feitas por crianças vietnamitas, etc.: contribui para a sua escravidão, etc. Mas o sentimento não é o mesmo, somos cúmplices, não assassinos tais quais. O eventual sofrimento dessas crianças é um efeito colateral de um prazer nosso.

Os rapazes não: eles divertem-se na tortura e na matança. 

Porventura comeram ovos estragados. Não sei. Sei sim que choca. A banalidade do mal parece pior que tudo. Noutra conversa pré-formatada que tenho, falo neste filme como o primeiro filme evil que vi. Para eles não passa de um jogo — Funny Games. E isso é o pior! É um jogo e eles nem parecem divertir-se assim tanto! Eles não são psicopatas tout court. Não existe um prazer imenso de matar, uma pessoa não compreende a sua motivação. Porquê? Esta estória sempre me pareceu infinitamente pior do que qualquer estória de psicopatas. Nunca percebi exactamente porquê. Hoje percebi, creio, enquanto ia ao talho comprar bifes de frango.

Eu compreendo um psicopata. Leia-se, eu entendo que se ele tem um imenso prazer de matar e sente uma necessidade de, então ele tenderá a matar (salvo auto-controlo). Eu não compreendo a origem do desejo nem o prazer que há em matar (como vos disse, eu sou um pobre cozinheiro, que faz omeletes relativamente normais). Agora, eu compreendo que existindo tal desejo, seja natural matar.

A minha análise tem contornos pensamento económico.

Eu não compreendo aqueles rapazes. Ceteris paribus, um psicopata tem de pesar pelo menos se o seu prazer extremo compensa o desconforto que é para a outra pessoa, falecer. (Daí que o Christian Bale no American Psycho, que mata(?) um sem-abrigo, que não faz falta — e não dá cadeia.) Existe aqui um cálculo. Existe um benefício claro para o psicopata. Pena é que dependa da morte alheia. Para os rapazes, não existe cálculo. Eles divertem-se, mas não particularmente! Ou seja, existiriam muitas outras actividades que lhes dariam prazer e que não implicariam a morte da família. A relação custo-benefício não existe aqui, e existe no caso do psicopata. Qualquer outra actividade escolhida não implicaria, ceteris paribus, a morte de alguém. Por isso é que é perverso: não faz sentido, está para lá da nossa compreensão. É o dito 'mal radical' porque não é passível de justificação, vá, racional:
Tenho de escolher entre as opções A e B, e a obtenção de A e B é-me indiferente. Como decidir? Se A=B, para mim, o meu critério deveria ser então: qual o benefício/prejuízo para os outros? (Os outros aqui podem ser quem vocês quiserem: do cão da vizinha à sociedade portuguesa — e todos os bancos de jardim que existem entre os dois).
Os rapazes matam só porque sim — e é isso que não é passível de compreender.

O Stalin terá morto mais gente do que o Hitler mas no primeiro caso parecia haver um cálculo (assim ficou para história vulgar). A morte era um meio para atingir um fim. Eu não concordo nem com um fim nem com o meio nem com o uso do meio para o fim. Ou seja, outros meios haveriam para atingir o fim (menchevequismo); Stalin optou por aquele meio. Uma pessoa condena o Stalin como pessoa que não olhava a meios para atingir os seus fins. E condena-o porque os seus fins eram horríveis: 'o comunisno é uma má ideia', 'estava ébrio de poder', 'os russos são loucos'. Enfim, tudo factos.
O mesmo não acontece com o Hiitler. O fim e o meio parecem confundir-se (pelo menos, na história vulgar como eu a recebi e interpretei em idas a supermercados).

Spoiler alert: eu disse que 'existiriam muitas outras actividades que lhes dariam prazer e que não implicariam a morte da família' e que 'os rapazes matam…'. Evitei os parênteses na que é a passagem central do post. Não interessa se eles de facto matam ou não a família — o ponto não é esse. Eles queriam matar e o prazer, moderado, dos rapazes implicava a morte da família.

P.S.: Fui comprar bifes de frango ao talho (peito de frango fatiado) porque os que estavam cá em casa estavam um pouco morrinhentos. Comprei a 6,46/Kg. Prefiro ir a talhos porque não confio tanto na carne embalada dos supermercados.

[A analogia não é perfeita entre o Stalin e o Hitler  e até me leva a outras especulações, que porém não vou explorar aqui porque o post já vai longo. Deixo aqui apenas a direcção. Há cálculo no Stalin mas não no Hitler tal como existe cálculo no psicopata mas não nos rapazes. Mas o Hitler pode ser interpretado como um psicopata. E nesse caso, o que seria pior, o Hitler ou o seu irmão gémeo, num universo paralelo, que tenha feiro exactamente o mesmo mas sem sentir especial prazer — só porque sim. Quem seria pior? Será que levando os exemplos ao extremo existe uma inversão na nossa intuição sobre a perversidade? Ou seja, se falarmos não na morte de uma família mas se estendermos a morte a milhares e milhões de pessoas, será que a banalidade do mal é percebida de uma forma diferente? Ou seja, entre o psicopata e os rapazes, os rapazes são mais perversos — mas entre o Hitler-psicopata e o Hitler-rapaz, o Hitler-piscopata é mais perverso?]

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