domingo, 26 de junho de 2011

and now for something completely different (VIII -> a sério que em chegando o X páro)

Desculpa, pensava o pescador enquanto olhava um pequeno peixe contorcido no balde. Estavam os dois sozinhos, perdidos num barco desnorteado no mar, rodeados por uma paisagem cénica que o quotidiano de ambos tornara corriqueira. O pequeno peixe dobrava-se em desconforto, rendido ao azedume da sorte. O pescador contava os segundos serenamente. Frequentemente punha um fósforo a arder ao lado do balde, fazendo apostas sobre qual das chamas se apagaria primeiro. Gracejava do ridículo da vida do peixe, quando essa era derrotada por um simples pau de madeira. Um peixe é só um peixe, reflectia. Assim, enquanto esperava o sufoco definitivo, o pescador tinha como refúgio uma gruta niilista onde se protegia de questionar o impacto da morte. Um peixe é só um peixe. Nos momentos mais críticos do seu ofício, imaginava que o peixe chorava. Logo depois atribuía esse pensamento de gente fraca à anestesia que é o balançar das ondas. Só pelo medo de ficar sem álibi para os afectos é que nunca pescara com os pés assentes em terra. Desculpa, pedia ele.
O pescador tinha desejos utópicos, de improvável concretizar. Desejava que o seu balde fosse uma cornucópia pronta fazer brotar carapaus e sardinhas, por ordem do seu pensamento. Se viessem directamente da sua fantasia, os peixes haviam de aparecer de igual forma, contorcidos, confrontados e conformados com os seus segundos finais (com a vantagem de serem roubados à imaginação em vez de arrebatados ao mar). O pescador tinha para si que havia uma espécie de compromisso lacrado entre homens e deuses, que impedia os primeiros de comer aquilo que não roubassem: daí a utopia da cornucópia e daí se ver obrigado a roubar o mar. Desculpa pedia ele, não ao peixe, ao mar. Desculpa, porque sabia ser possível que esse mar condenasse o seu roubo e levantasse das suas entranhas uma tromba de água. Desculpa, por saber que essa tromba havia de contemplar do alto o seu contorcionar, no meio do barco qual balde. Desculpa, por achar que a tromba de água havia de pedir desculpa pela insignificância de estar prestes a roubar um pequeno pescador ao mundo dos vivos. Desculpa pedia ele, e enquanto isso, acendia um novo fósforo.

2 comentários:

  1. Desde que me deparei com este texto que o tenho relido inúmeras vezes. Reli-o de forma instintiva, e a principio quase inconsciente, pois de cada vez que o faço encontro nas palavras algo novo e agradável, como um qualquer pormenor arrebatador que confere uma enorme subtileza ao texto.
    Texto muito bem conseguido, com a capacidade de me ficar na cabeça e de ser ponto de partida para as minhas próprias reflexões. Parabéns!

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