quarta-feira, 1 de setembro de 2010

and now for something completely different


o lado direito do vale separava-se do esquerdo por um rio azul de gelado, com a pressa a lembrar que há margens que jamais se podem unir. corria montanha acima. o mar que se via, via-se cada vez mais longe, porque o rio o esvaziava, porque o rio corria montanha acima. as paredes do vale eram tão verdes, com lírios das cores quase todas, azuis, amarelos, vermelhos. havia vento e borboletas com mais cores que os lírios, algumas ainda sem nome. havia uma casa de madeira com a única janela em forma de lua em quarto minguante. ao lado, um pomar atraente, com árvores perfumadas e sem um padrão característico à excepção dos suculentos frutos vermelhos e escuros comestíveis a qualquer época. quando a curiosidade se tornou irresistível entrou. apenas tinha uma divisão, com tudo o que se precisa para fazer vida: uma lareira, um chuveiro, um sofá, livros e um violoncelo. trazia à memória saudade, porque estava vazia. e se estava vazia alguém dela estava longe. ou então é daquelas casas que crescem sozinhas, foi um rapaz e uma rapariga que semearam no vale dois pauzinhos de gelado e como regaram a terra com sonhos, nasceu um casa. nunca ninguém lá viveu, a lareira nunca fora acesa e o violoncelo nunca havia sido tocado, pensou. quando entrou disse que era ali que gostava de morrer, um dia, talvez porque havia espaço na janela em forma de lua para que entrassem as borboletas e lhe levassem o corpo pelo vento, pelas nuvens, e assim pudesse continuar a viver sem se aperceber. de manhã ia acordar, e esperar que o rio que passava ao lado da casa e que corria para fugir ao mar, lhe trouxesse notícias do mundo, porque não uma garrafa de vinho e um par de robalos para o almoço. já viram, se o rio descesse a montanha traria na melhor das hipóteses pedras. assim, e como vinha do mar podia transportar tudo o que o mundo lhe quisesse fazer chegar. à tarde ia caçar lírios, apanhar aos três e quatro de uma só vez e com as mãos em forma de concha. com zelo, ia despejá-los no rio e vê-los subir a montanha, vê-los chegar ao topo e imaginá-los a descer para parte incerta. no resto do dia, ia escrever as páginas do seu diário sempre iguais, das quais mudava apenas com o passar dos tempos, a sua voz cada vez mais rouca, as suas articulações cada vez mais ruidosas e os seus dedos cada vez mais hirtos e rugosos. construía certezas, que quando fosse para morrer, se ia transformar em árvore. arrumava a casa, a lareira havia de não parecer estreada e o violoncelo havia ser outra ver virgem. não eram as borboletas que o iriam libertar mas raízes feitas dos seus pés. ia plantar-se no pomar, esperar que o seu corpo se transformasse em tronco e divertir-se na eternidade longe do paraíso, a chorar, que é como quem diz, a brotar do seu próprio sangue suculentos frutos vermelhos e escuros comestíveis a qualquer época.

3 comentários:

  1. saudades em me perder nas ruas das tuas palavras e frases que levam a mão a pegar em pincel e tornar tudo um quadro de Monet.
    este especialmente, lembrou-me a história do Foge-Pombo. publica fernando!

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  2. oh, obrigado rita. e o pequeno vicente foge-pombo... que nostálgico! =]

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  3. está tão bonito, e talentoso*

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