domingo, 19 de abril de 2009

Quem não deve, não teme


Da cozinha, vinha o cheiro a polvo cozido envolto em gambas e molho de alho francês. Na sala, Amilcar Sampaio de Vasconcelos, Guilherme Sampaio de Vasconcelos e Pimpinha Sampaio de Vasconcelos esperavam o jantar, na quase certeza de que o cheiro que os fazia salivar tinha tanto de apetitoso como falso. Sabiam que a Marya, empregada bielorussa, gozava o seu dia de folga, e na cozinha estava Teresa Sampaio Vasconcelos, dona da casa, mãe de família nos intervalos do SPA. O cheiro seria provavelmente do cubo de knorr, e o prato não passaria de frango assado.
Requintado e saboroso ou não, a família mal conseguiu conter a fome na espera, e quando o ar orgulhoso de Teresa Vasconcelos irrompeu pela sala, todos saltaram que nem molas para a mesa. Todos menos Dédé Sampaio Vasconcelos, que com os seus 15 meses era o benjamim da família, e em vez de molas, tinha para sua locomoção, rodas de carrinho de bebé.
Quando tudo estava na mesa, tapado para não arrefecer, Teresa Sampaio Vasconcelos fez uma leve pausa, sem se sentar. Era a única de pé, e ainda nesse estado proferiu:
Descobri tudo!
De leve, a espera fez-se pesada, e nem as gargalhadas de Dédé foram a faca disposta a cortar o ar sisudo que se abateu nos rostos.
Amilcar Sampaio Vasconcelos foi o primeiro a engolir em seco. Saiu da mesa num relâmpago e meteu-se no carro. Todos estranharam não ter levado chaves, e estranharam mais ainda, quando da janela o viram puxar do telemóvel e chorar para quem só ele saberia. Quem lesse lábios não teria dificuldades em traduzir um: Joana, o que fomos nós fazer.
Podia ser um episódio que motivasse a conversa, no jantar dos que sobraram na mesa. Podia, não tivesse Guilherme Sampaio Vasconcelos desaparecido. Suava como suam os escravos da culpa, e sabia-o, era culpado de tanta coisa que não tinha por onde começar. Num impulso, verificou se permaneciam escondidos e intocáveis os trinta e tal testes de português, matemática, biologia... (enfim, os únicos que não queimara, por serem os mais próximos da positiva).
O resto das culpas acumuladas ao longo de uma vida de adolescente, só com tempo as poderia saber reveladas ou não.
Pimpinha Sampaio Vasconcelos ficou ali. Ali mesmo. Não mexeu uma palha. Temo não estar a ser bem entendido, dada a complexidade da expressão “ficar ali”. Ela não ficou simplesmente ali em casa, nem ali na sala, nem ali na cadeira. Ficou exactamente na mesma posição na qual estava quando a mãe proferiu as turbulentas palavras. Mais parada que uma estátua. Apenas corou, e respondeu à indignada pergunta dos olhos da mãe (mas o que se passa?) com um “Desculpa” envergonhado. Depois correu, a chorar para a casa de banho.
Dédé Sampaio Vasconcelos, tinha um ano e tal e mal sabia falar. Não distinguia o bem do mal, daí não se achar culpado ou inocente. Para ele, sigilo era apenas o “shhhh” que os pais lhe dirigiam com o indicador à frente da boca, no supermercado, quando não queriam que contasse aos irmãos que ganhara um chocolate e eles não. Mesmo sem saber o que era, gostava desse tal sigilo. Sempre o fazia lambuzar-se no egoísmo do paladar de guloseimas que eram para , para Teresa e para Guilherme. Eles nunca saberiam.
Assim sendo, o bebé continuava a rir. Com um palmada tirou a tampa da sua papa. Teresa Sampaio Vasconcelos, estava meia pálida, de tanta agitação à sua volta, mas sorriu para o filho mais novo. Ele fora o único a descobrir a comida, coberta pelas tampas para não arrefecer, tal como ela pedira no início. Dédé Sampaio Vasconcelos desconhecia as especificidades da semântica linguística. Julgo que também não percebeu o significado de “Descobri tudo”, como um simples mote, inocentemente ditado pela mãe, em jeito triunfal. Ela apenas queria pedir para que destapassem tudo e pudessem ver que lhes tinha feito uma surpresa, e embora o cheiro adivinhasse polvo cozido envolto em gambas e molho de alho francês, o jantar era frango assado.

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